segunda-feira, 27 de junho de 2011

A Fonte das Lágrimas

A História é escrita pelos vencedores, mas o que se perde no campo de batalha (dos homens e das ideias), pode ser sempre reconquistado nas guerras da cultura. E a esquerda, entre alguns contratempos no terreno e muitas derrotas — algumas auto-infligidas — da sua visão mistificada e burlona da natureza humana, empreendeu, no século XX, uma batalha cultural que acabou por ganhar. Soljenítsin foi ignorado e logo atacado, Camus foi abandonado pelos “amigos” e Michael Moore é adulado pelos anti-americanos, apesar de encarnar o estereótipo americano, com o boné, o duplo queixo e a barriga proeminente. Com figuras bem colocadas no terreno e desqualificando o inimigo, assim se ganham as guerras culturais. As camisolinhas do Che Guevara andam por aí para mostrar quem foi o vencedor desta contenda.
Vem isto a propósito da ópera Ainadamar, de Osvaldo Golijov, que ontem foi apresentada pela primeira vez em Granada, nos jardins da Alhambra. A obra, baseada no assassinato de Federico García Lorca, é um resultado da manipulação dos factos em cima referida: de um lado estão os bons, os republicanos, os defensores da liberdade (não se riam); do outro os maus, os falangistas, carrascos dos amanhãs que cantam. Lorca, o progressista, é morto pelos reaccionários, uma banda de intolerantes que não aceitam as ideias inovadoras e a postura social de um autor apolítico. O problema desta história tão simples, para além da amplificação dos mitos da guerra civil espanhola, é que Lorca foi um incansável divulgador e defensor do flamenco e dos touros. O flamenco, no início do século XX, era visto pelas forças progressistas como um dos males de Espanha. O outro alvo da Geração de 98, os touros, é um tema que ainda hoje leva à histeria os radicais, que vêem a festa como um dinossauro reaccionário encravado na engrenagem progressista. Lorca, o poeta do flamenco e dos touros, retratado como o centro de um conflito progressista vs reaccionário é, por isso, risível. No mínimo.
Conhecendo bem Espanha, suspeito que a forma como é abordada a história causou algum incómodo na audiência. Excepto meia dúzia de palermas que gostam de ir para as Puertas del Sol gritar pela “memória histórica”, os espanhóis, mesmo aqueles que votam à esquerda e que contam nas memórias familiares com avôs e bisavôs mortos pela Falange, recusam a visão maniqueísta da Guerra Civil de Espanha que foi sendo construída pelos soldados da cultura. Quando se toca no tema, não escondem o desconforto. Mas à arte não se pede rigor, correcção (ou incorrecção) política, e muito menos que seja um refúgio confortável. Não é pelo maniqueísmo que Ainadamar falha. Este detalhe, no entanto, é o prenúncio do desastre.
Demasiado confiante no impacto da descrição romantizada, e até lamechas, da guerra e dos eventos ligados à morte de Lorca, o autor do libreto, David Henry Hwang, desleixou-se e apresenta-nos uma obra sem drama, sem tensão, com momentos banalíssimos e cenas mal resolvidas, e com um final penoso. O pormenor de encenar a Falange a cantar e a bailar flamenco é incompreensível desde qualquer ponto de vista. Se pretendia evocar o espírito da geração de 98, Hwang falhou estrondosamente, como já foi referido atrás. Se é alguma espécie de ironia, então fomos todos ludibriados pela obscuridade da intenção. À saída, o flamenco da Falange foi o ponto mais criticado da noite. Uma parvoíce que nem sequer o brilhante desempenho de Alfredo Tejada pôde atenuar.
A um libreto desastrado junta-se uma música que, apesar de momentos belos, como a abertura, não deixa muito espaço aos cantores. Osvaldo Golijov é conhecido por incorporar nas suas composições os sons tradicionais das três culturas, a judia, a árabe e a católica. Apesar de não ser o elo mais fraco do espectáculo, esperava-se mais de Golijov, especialmente numa obra que se situa, física e culturalmente, na cidade que foi o ponto de convergência dessas três culturas: Granada. Quanto aos cantores, não há muito a dizer. Excepto o já referido Tejada, vale a pena destacar apenas a meio-soprano Marina Pardo, que fez o que pôde por um Lorca perdido nos delírios de Hwang. O baile flamenco foi fraco, sem peso na encenação, e fica-se com a ideia de que podia ter sido melhor aproveitado. Em resumo, poucos altos e muitos baixos numa noite de ópera que apenas a frescura e beleza da Alhambra nocturna pode um dia resgatar do esquecimento. Golijov devia escolher melhor as companhias.

In: Aspirina B

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