terça-feira, 26 de julho de 2011

Nuances preciosas da linguagem

E, de repente, os atentados na Noruega deixaram de ser acções terroristas, e passaram a ser atentados da extrema-direita. Respirei de alívio. Uff…

Então, está bem. Quando as mortes são provocadas por gente de pele clara e, eventualmente, de olhos azuis, a coisa já não é assim tão grave. Pelo menos, de terror não têm nada.

Entretanto, na Líbia, sete explosões (que linda nuance da linguagem!) fizeram-se ouvir, durante a noite, em zona residencial onde é suposto viver Kadaffi. Aqui, também não há terror nenhum. Quando as explosões não são provocadas por um carro armadilhado, ou por explosivos amarrados à cintura, mas por sofisticados aviões da NATO, tudo é perfeitamente legítimo e, principalmente, democrático. E o sangue, ossos e carne espalhados em virtude das explosões, são, apenas «efeitos especiais» - perdão: efeitos colaterais. Aconteceu, paciência. Vítimas? Se houve, eram todas escuras….

Por outras palavras:

-As bombas brancas, enfim, são coisas que acontecem;

- As bombas escuras, são coisas terríveis;

- O sangue dos brancos, é mesmo sangue;

- O sangue dos escuros, é uma coisa avermelhada e viscosa;

- Os brancos, podem sempre bombardear os escuros;

. Os escuros são terroristas, se bombardearem os brancos;

- E, principalmente: os brancos podem sempre ir à terra dos escuros buscar as coisas  engraçadas que eles têm lá. Chama-se a isso desenvolvimento, progresso e, muitas vezes, ajuda humanitária.

Eu gosto muito de ser branco.

E assim vai o mundo, como dizia o outro…

 João Carlos

segunda-feira, 25 de julho de 2011

Castilho dá porrada no Ramiro e no Nuno


Um dos partidos a cujo Governo Nuno Crato pertence, no caso o PSD, tem um extenso documento, que escrevi, sobre o curriculum do básico, se é que a purga de Maio não o queimou. O Professor Ramiro Marques confunde os seus leitores ao tentar demonstrar que errei, quando refiro que a adaptação é a recuperação do diploma que a AR inviabilizou (com o beneplácito do PSD). Não digo que é igual. Digo que é a recuperação da visão de Isabel Alçada. E é. Dela e de Maria de Lurdes Rodrigues. Até a questão do par de EVT, cuja diferença eu realço, é invocada, em jogo de cintura, como se eu a não tivesse referido. Para discordarmos, o que é salutar, não precisamos de manipular a nosso favor o que os outros escrevem. O rigor é exigível, minimamente exigível. 

Não tenho a certeza que mais tempo para Matemática e Língua Portuguesa não contribuirão para melhorar os resultados. Tenho é a certeza de que a iniciativa certa está longe de ser a mesma para todo o país. Isso é o que defendo no meu artigo e o Professor Ramiro Marques ignora. Verifico é que, com menos horas, há alunos que conseguem notas altíssimas, 20 mesmo. Sei, e sabe qualquer professor de sala de aula, que mais horas são inadequadas para muitos. Sei é que os milhares de horas do PAM e do PNL não deram, aparentemente, grandes resultados. Como não deram as horas a mais que já derivavam do Estudo acompanhado. Sei é que a Pedagogia é eminentemente especulativa e que nenhum decisor político maduro pode decidir sem considerar a opinião dos que estão no terreno. Defendi, defendo e continuarei a defender isso, até concluir que estou errado. Ser-me-ia grato que colocasse à apreciação dos seus leitores este meu esclarecimento.

Com os meus cumprimentos,Santana Castilho

domingo, 24 de julho de 2011

Janis Winehouse sobre a filha: "Ela parecia fora de si"

Mãe da cantora contou a jornal inglês sobre os últimos momentos ao lado da filha famosa
QUEM online; Foto Getty Images
  Getty Images
Janis conta sobre os últimos momentos ao lado da filha, na sexta-feira (22)
Janis Winehouse, mãe de Amy Winehouse, contou em entrevista ao jornal inglês "Daily Mail" que a morte da filha "era uma questão de tempo". Ela também relatou como foram os últimos momentos ao lado da cantora, com quem esteve 24 horas antes de sua morte, no sábado (23). "Ela parecia completamente fora de si. Não consegui digerir ainda sua morte assim tão de repente", disse Janis, que contou ainda que ela e a filha passaram uma tarde agradável na sexta-feira (22). "Ela me disse 'eu te amo, mamãe' quando fui me despedir. São palavras preciosas que me farão sempre lembrar de Amy."
Mitch Winehouse, pai de Amy, estava em turnê em Nova York quando ficou sabendo do ocorrido. De acordo com a publicação, apesar de ter ficado arrasado com a morte da filha ele admitiu que tentará ser forte por amor à ela. "Estou voltando para casa. Eu tenho que estar com Amy. Não posso desabar por causa dela. Minha família precisa de mim."
Neste domingo (24), a família de Amy Winehouse divulgou um comunicado à imprensa em que lamenta a morte da cantora e pede privacidade. "Ela deixa uma lacuna em nossas vidas. Ela era uma sobrinha, irmã e filha maravilhosa. Estamos nos reunindo para lembrar dela e gostaríamos de privacidade e espaço neste momento terrível."
ENTENDA O CASO
A cantora foi encontrada morta em sua casa, em Camden, Londres, na tarde de sábado (23). Apesar de ainda não ter sido divulgada a causa da morte especula-se que ela tenha acontecido em função de uma overdose de drogas e álcool. Uma fonte contou ao "Daily Mail" que Amy comprou cocaína, heroína, ecstasy e ketamina (utilizada como tranquilizante para cavalos) na noite anterior a sua morte. "Até este momento o caso vem sendo tratado como sem explicação e não aconteceram prisões que estivessem ligadas ao episódio", disse um porta-voz da polícia em comunicado.
A necrópsia do corpo de Amy Winehouse deverá ser feita apenas na segunda-feira (25). De acordo com a imprensa britânica, o funeral pode acontecer na terça-feira (26), assim que os trabalhos da perícia forem concluidos. Amy tinha um forte histórico de problemas com drogas e álcool e já havia sido internada inúmeras vezes em clínicas de reabilitação. Em junho, ela precisou suspender sua turnê pela Europa por conta de sua saúde debilitada e por não conseguir concluir as apresentações.

Ava Gardner

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beleza intemporal

quarta-feira, 20 de julho de 2011

HAJA FÔLEGO!!!

Exigências da vida moderna (quem aguenta tudo isso???)
ü Dizem que todos os dias você deve comer uma maçã por causa do ferro.
ü uma banana pelo potássio.
ü E também uma laranja pela vitamina C.
ü Uma xícara de chá verde sem açúcar para prevenir o diabetes.
ü Todos os dias deve tomar ao menos dois litros de água.
ü E depois uriná-los, o que consome o dobro do tempo.
ü Todos os dias deve tomar um Yakult pelos lactobacilos (que ninguém sabe bem o que é, mas que aos bilhões, ajudam a digestão).
ü Cada dia uma Aspirina, previne infarto.
ü Uma taça de vinho tinto também.
ü Uma de vinho branco estabiliza o sistema nervoso.
ü Um copo de cerveja, para... não lembro bem para o que, mas faz bem.
ü O benefício adicional é que se você tomar tudo isso ao mesmo tempo e tiver um derrame, nem vai perceber...
ü Todos os dias você deve comer fibra. Muita, muitíssima fibra. Fibra suficiente para fazer um pulôver.
ü Você deve fazer entre quatro e seis refeições leves diariamente.
ü E nunca se esqueça de mastigar pelo menos cem vezescada garfada.
ü Só para comer, serão cerca de cinco horas do dia. UFA!!!
ü E não esqueça de escovar os dentes depois de comer.
ü Ou seja, você tem que escovar os dentes depois da maçã, da banana, da laranja, das seis refeições e enquanto tiver dentes, passar fio dental, massagear a gengiva, escovar a língua e bochechar com Plax.
ü Melhor, inclusive, ampliar o banheiro e aproveitar para colocar um equipamento de som, porque entre a água, a fibra e os dentes, você vai passar ali várias horas por dia. #@&*#!<> NÉ!!!
ü Há que se dormir oito horas por noite e trabalhar outras oito por dia, mais as cinco comendo são vinte e uma. Sobram três, desde que você não pegue trânsito. TÁ DIFICILLLLL!
ü As estatísticas comprovam que assistimos três horas de TV por dia.
ü Menos você, porque todos os dias você vai caminhar ao menos meia hora (por experiência própria, após quinze minutos dê meia volta e comece a voltar, ou a meia hora vira uma).
ü E você deve cuidar das amizades, porque são como uma planta: devem ser regadas diariamente, o que me faz pensar em quem vai cuidar das minhas amizades quando eu estiver viajando.
ü Deve-se estar bem informado também, lendo dois ou três jornais por dia para comparar as informações.
ü Ah! E o sexo!!!! Todos os dias, um dia sim, o outro também.
ü Dizer EU TE AMO, toda hora. ''Ainda pego quem inventou essa neura...que sac o!!!''
ü Também precisa sobrar tempo para varrer, passar, lavar roupa, pratos e espero que você não tenha um bichinho de estimação. Se tiver tem que brincar com ele, pelo menos meia hora todo dia, para ele não ficar deprimido...
ü Na minha conta são 29 horas por dia.
ü A única solução que me ocorre é fazer várias dessas coisas ao mesmo tempo!!!
ü Tomar banho frio com a boca aberta, assim vocêtoma água e escova os dentes ao mesmo tempo.
ü Chame os amigos e seus pais, seu amor, o sogro, asogra, os cunhados....
ü Beba o vinho, coma a maçã e dê a banana na boca da sua mulher. Não esqueça do “EU TE AMO”, (Vou achar logo quem inventou isso, me aguarde).
ü Ainda bem que somos crescidinhos, senão ainda teria um Danoninho e se sobrarem 5 minutos, uma colherada de leite de magnésio.
ü Agora voce tá ferrado mesmo é se tiver criança pequena. Aí lascou de vez, porque o tempo que ia sobrar para você... já era. criança ocupa um tempo danado. Agora tenho que ir.
ü É o meio do dia, e depois da cerveja, do vinho e da maçã, tenho que ir ao banheiro e correndo.
ü E já que voulevo um jornal... Tchau....
ü Se sobrar um tempinho, me manda um e-mail.
Luís Fernando Veríssimo

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Economia e religião nas culturas letradas: o pecado como conceito da reprodução social

atrio

1. O Problema

         Todos os povos idealizam as formas segundo as quais os bens serão produzidos, distribuídos e consumidos. Se esta actividade está ou não dividida em estruturas e instâncias, e qual delas assume precedência por sobre as restantes, é um problema do investigador, cuja técnica de conhecimento contém os limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as pessoas que trabalham, o conhecimento daquilo que fazem, como, quando, quanto e com quem passa por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para escutá-lo: se é certo que todos os povos produzem, não é menos certo que todos sabem como o fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a dimensão temporal para entender como se combinam as ideias e as actividades. Ao longo do tempo, o conceito de economia tem variado desde o conjunto doméstico que trabalha, dividindo as actividades segundo as formas de classificar pessoas dos gregos clássicos, até à teoria independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas, teorizando e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as pessoas.
         Ao longo dos séculos, as formas de combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas  pela  participação de  uma vontade  divina arbitrária na criação da sociedade, incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina, sendo criação do homem, já que só tem existência na medida em que é usada no cálculo reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor, materializando-se nele, é o conceito à volta do qual os povos constróem a explicação de si próprios e aferem as relações entre os membros individuais. Esta é a forma chamada religiosa de entender as relações sociais, definindo o trabalho de forma directa e precisa, que se pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços e salários. Não se pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da religião, porque a religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é, contudo, a forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar quando têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre ambas as formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre ciência e teologia com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto que, por outro, se deve à ignorância que a cultura letrada, enquanto forma dominante de pensar a partir da causalidade, atribui aos que não sabem economia. Estes, usam o saber subordinado da religião.

2. A religião

         Existem mil e uma formas de definir este conceito, e outras tantas formas haverá também de entendê-lo e pronunciar-se acerca dele. Entendo por religião o conjunto de abstracções em ideias, rituais e entidades espirituais que os homens elaboram a partir da sua experiência histórica: a teorização do acontecer histórico.
         No meu pensamento está presente o facto de que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos factos e definimo-los porque é essa a forma de os entendermos, colocando os limites. Acabamos por definir da mesma forma, aquilo que serve como o que não serve: sistematizamos os abusos do corpo e sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser assim, uma síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no meio do colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua casa; quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma ou ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu valor enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As formas de compreensão dos Maori  (Firth, 1929) passam por ponderar os valores que cada pessoa deve ter na sua condição. O mito do Bagré dos Lo Dabaga (Goody, 1970) serve para desenvolver as qualidades da observação e da memória. As pessoas no Ocidente têm de exibir virtudes, que estão repartidas entre os atributos da divindade, e o culto dos mortos específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a religião cumpre a função social de dividir cada membro individual pelo conjunto de qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a lealdade, o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que, se têm, estão atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da abstracção feita pela mente que constrói as relações sociais são as ideias de mal e de dor. Mesmo a explicação da criação do homem é um mito do Génesis que explica, com todo o detalhe, como se chegou a saber: em companhia de outros seres humanos, da própria natureza que é a serpente, a árvore e o jardim, e prescindindo da divindade e das suas normas. O castigo da expulsão, antecipa as fadigas pelas quais passará o corpo e define com antecedência as doenças ou disfunções que terá na medida em que transforma a matéria em bens. De forma sistemática, a concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em formas explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai entregando os elementos do trabalho em representações que permitem lembrar nas culturas sem escrita. A palavra divindade não é suficiente, existem as representações que se vêem, assim como mais tarde se lêem. Com técnicas diversas, o homem abstrai a sua acção e recorda.

3. O pecado

         Se o trabalho é a colaboração de seres humanos, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou a sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxinomia e uma garantia?
Influenciados como estamos pela nossa própria forma de pensar, poderemos entender os seres humanos que, pela crença, definem as formas incorpóreas e abstractas de lembrar as definições das relações sociais, dizendo que se trata de um culto de espíritos, que é como designamos tudo o que fica fora da História. Contudo, se nos recordarmos do valor que o trabalho tem entre os seres humanos que se vêem e sabem parte da Natureza, apercebemo-nos da necessidade que a ideia de pecado envolve, de distinguir para entender, na relação homem Natureza.
         A primeira parte da taxinomia consiste em manter os indivíduos submetidos ao grupo: o próprio conceito de pecado deriva do amor, isto é, a caridade entre os homens e para consigo próprios, expresso no amor da divindade. Quem rompe a lealdade com o grupo, fica exposto da forma como ficou Caim, Salomão, Jesus, Judas, Pedro, Thomas Becket, entre outros. No entanto, existe uma forma de romper por traição, e, a forma de romper porque o grupo se torna pouco razoável; ainda que nos dois casos se sofra, só a traição é castigada porque mata o entendimento entre todos, hierarquizado como é. Uma segunda parte, é o cuidado com as virtudes que a partir da divindade os homens enumeram, numa projecção das suas próprias potencialidades com as quais a revestem: justiça, paz, bondade, omnipotência, contidas no homem. Uma terceira parte da taxinomia, é a submissão à hierarquia do grupo que trabalha, onde há uma correlação entre dar a vida, ter recursos, saber administrá-los e aceitar a subordinação aos que sabem e entregaram o conhecimento e os bens que asseguram a continuidade social. Uma quarta parte da taxinomia, diz respeito à compreensão dos corpos, o seu cuidado e o seu objectivo, onde se define o entendimento da sua gestão, não só para mantê-los vivos, bem como para não desgastá-los. Ao mesmo tempo, uma quinta parte classifica os bens com que os corpos trabalham e os retira aos que não possuem entendimento ou legitimidade. Uma sexta parte refere-se à reputação das pessoas que circulam entre as coisas, já que sabem transformá-las, o que lhes confere um bom nome, quer dizer, um destino entre os homens, um lugar garantido na estrutura enquanto mantenham o seu saber, a fama que vem de preservar o contexto que guarda esse saber e as condições em que o corpo pode materializá-lo. Finalmente, a sétima parte da taxinomia é a sistematização das relações entre os homens, os seus grupos e as suas coisas, de forma que ninguém subtraia a outro o que facilita e permite a sua reprodução.
         A garantia de tudo isto está na criação das transgressões que durante muito tempo foram castigadas em nome da divindade cá na terra, enquanto que no Céu se viria a fazer como Deus entendesse. A história recente do Ocidente, com o seu antecedente de abstrair os seres humanos segundo uma concepção do trabalho que se entende primeiro e se faz depois – alma e corpo – mostra as consequências da transgressão.

4. Economia

         Parece-me que tais consequências se encontram na economia, como domínio independente, ou talvez tornado independente, da religião. O pensamento do Ocidente começa a preocupar-se com as coisas quando cria uma outra força para o trabalho que segue estritamente as regras da invenção humana, aplicada agora de forma não subjugada ao movimento natural. A luta mais esclarecedora é a discussão entre os fisiocratas e a burguesia no seu interlúdio revolucionário de 1791. Talvez seja tão importante como a da sistematização de elementos que se encontravam dispersos e que permitem a Ricardo formular a lei que orienta a criação do valor, enquanto Marx os usa para explicar a História. Assim, temos as várias lutas.
         A economia passa a ser a teoria do trabalho quando as bens adquirem movimento próprio escapando das mãos dos homens como mercadorias, e o conhecimento se especializa em qualificar a força de trabalho. A teoria que sistematiza a acumulação vem já do entendimento de que, obter o trabalho dos outros, quer dizer, não tratá-los como iguais, decorre da caridade não cumprida. A própria acumulação é um entesouramento onde apenas se armazena o coração e os sentidos, se isso a torna possível. Entende-se que o corpo sem cuidados e sem comida, sem recursos, acaba por não estar em condições de trabalhar e, usando o artifício de transpor o respeito pelas coisas, pessoas e prestígios de outros para alguns por meio da lei civil, inverte-se a realidade que sistematiza o religioso, acabando por fazer desta forma uma figura verdadeiramente de espelho. A economia valoriza o trabalho do homem a partir dos mesmos factos pragmáticos com que a religião os estuda e classifica: é da ética que vem o primeiro princípio da criação da riqueza, o trabalho; enquanto que o segundo, o valor, pode dizer-se que vem da apreciação da diligência, honestidade e cumprimento dos valores domésticos e familiares. O terceiro resultado, a riqueza, acumulada ou lucro da bondade , que é o conceito que subsume  o saber usar os bens para os objectivos para os quais servem. É aqui que a economia consegue a separação dos homens que entendem o trabalho pela dor, a riqueza pelo milagre, a acumulação pelo respeito ao próprio corpo e ao dos outros. Cria um conhecimento do movimento dos recursos, da sua produção, circulação e consumo que escapa a quem não possui o entendimento dos princípios com que se avalia o cálculo do que produzir, ao mesmo tempo que se gera uma separação entre esse conhecimento e as pessoas, através do emprego de técnicas para recordar princípios que não são apenas escritos, mas obedecem a formas de registar por escrito depois de aplicar uma bateria de outros conhecimentos, seja no movimento da produção industrial que obriga a desenvolver a teoria económica, seja nas próprias regras e abstracções com que o saber económico é produzido. Conteúdo e forma colocam o saber reprodutivo longe dos não especialistas, tomando vantagem o proprietário que lucra através das formas de entender os seres humanos pela sistematização funcional que o pecado ensina. A economia funciona com a teoria do mal.

5. O mal

         É uma acumulação letrada através do tempo. Assim como o bem está reflectido na divindade que é infinita, e é duradouro enquanto virtude, o mal é conjuntural. O problema que o ser humano tem, por onde é atingido pelos outros ao descuidar-se, é a sua própria fragilidade no meio da matéria. Não há só que comer, beber, vestir-se; há que saber como se faz, pô-lo em execução e mostrar que se persiste e triunfa. A resistência à virtude, é a melhor ideia que encontro para definir o mal. Ao conjunto há ainda a acrescentar a afectividade e o desejo que fazem parte do corpo que o homem veste. Estes elementos individualmente distribuídos por todos os membros de um grupo social, e por igual, colocam-nos em guarda uns frente aos outros porque cada indivíduo que sente a necessidade é com outro que vai resolvê-la. Não se pode entender esta fragilidade no vazio, pois não existe assim; nem pela categoria histórica, já que é demasiado geral. A fragilidade reside nos indivíduos que vivem relações de aliança formal, mas que funcionam pela capacidade ou incapacidade de transformar uma ou outra parte da Natureza. Não é  a reciprocidade que permeia as relações humanas numa teoria sobre a dádiva: é a competência que distribui desigualmente capacidades entre indivíduos que vivem em grupos. O que relaciona cada um destes elementos com os de fora do seu grupo de pertença, é a sua própria capacidade de produzir o óptimo: bem, rapidamente, e para suprir as necessidades de muitos.
         A sabedoria assim avaliada, é controlada diversamente através do tempo, da mesma forma que se entende que o grupo do Génesis, ao ignorar Deus, peca. A capacidade é um elemento de hostilidade quando não possui, vem de Deus quando a pessoa que a distribui entre todos o faz sem vantagens materiais, ou do Diabo quando se aprende o que dá vantagem. O mal é saber para vantagem própria, controlando com o saber os recursos que defendem o homem da sua fragilidade. Preguiça: afasta do trabalho; luxúria: não permite controlar a fertilidade; avareza: retira bens da circulação; usura: acumula-os em poucas mãos. É por isso que são castigados. Como também o é a experimentação fora da teologia, ou seja, a aprendizagem das as técnicas de conhecimento que estão definidas fora do grupo em que a pessoa está. A capacidade não explicada para poder trabalhar optimizando, assim como a capacidade não submetida à hierarquia e poder que não acumula para glória da divindade, são bases do mal.
         Desde o desenvolvimento da teoria do contrato, a suposta igualdade resolveu a situação parcialmente, mas colocou-as de forma ininteligível por meio de regras da cultura letrada, temática que constitui um outro capítulo deste livro. A capacidade do homem para produzir valor económico que se troca, pode entender-se na medida em que a sua habilidade é teorizada em proibições frente à sua fragilidade. Pelo que, o que o conceito de pecado faz, é sistematizar a natureza e capacidade dos seres humanos na construção das suas relações.

6. O valor

         Será ao económico, não ao ético que me refiro aqui. Não me parece ser possível separar as duas formas de o conceptualizar: o trabalho é de quem o faz. Na economia, o trabalho é conceptualizado e entendido como a aplicação do esforço humano à transformação da natureza e esta actividade cria, de acordo com o tempo que demora, a desigualdade entre as coisas que permite, avaliando-as, equiparando-as e  trocando-as. Há quem diga que é a escassez do bem produzido que cria o seu valor; há quem diga que a riqueza resulta da utilidade marginal. Contudo, o valor é, em todas as hipóteses, a avaliação de um bem que resulta do trabalho humano, com ou sem utilidade marginal. Estas ideias sistematizam a criação de bens e a subordinação do Homem aos mesmos, mas mantêm o conceito básico de actividade humana dirigida para a transformação da matéria: o que se procura é domesticação da matéria, seja pela vida da ciência para quem entende o raciocínio letrado, seja através do raciocínio que deriva a experiência acumulada em várias divindades que se pronunciam sobre a heterogeneidade do mundo, unificando actividades diversas em prol da fabricação de um objecto, ou da organização de uma tarefa.
         A ideia básica do trabalho foi concedida no Ocidente como uma condição para o homem viver num estado natural de economia natural e é esse conceito que define a criação do valor. Os textos que definem a economia natural, ou relações sociais sistematizadas a partir da subordinação da matéria à habilidade humana organizada em família e grupo de parentes, estão baseados nas ideias definidas teologicamente através do tempo e acumuladas em escritos. Estes textos acabam por configurar as relações de uma forma definitiva, contextualizando o trabalho. O primeiro tópico que a ética aborda, é o do engenho de cada um, enquanto virtude, acompanhado pela habilidade e pela a fidelidade ao que se sabe fazer e a obediência para com quem manda fazer. O segundo, explicita que o trabalho é digno, ou seja, a pessoa é socialmente aceite, cultivada e respeitada desde que domine uma forma de subordinar a natureza, sendo assim uma parte da memória do grupo. Simultaneamente, a actividade produz uma igualdade entre os himens que a praticam: todos os seres humanos estão sujeitos à necessidade de produzir uma parte da vida e esta produção, que acaba por ser desigual porque são muitas as tarefas, gera o conceito de justiça ou conjunto de regras que resguardam a igualdade entre as pessoas, apesar da diferente aplicação do seu esforço. Em terceiro lugar, esta justiça encontra-se na medida em que a Natureza está partilhada através de um sistema privado de possuí-la, pagando-se a quem não possui um salário que seja conveniente para a actividade realizada conforme a condição daquele que produz, do que produz, e para quem o faz. Em quarto lugar, os bens produzidos neste sistema, em virtude do trabalho e da propriedade, podem-se trocar, mas não devem negociar já que esta actividade fica fora do foro da economia natural, sem criação de valor pelo esforço humano, mas sim por moeda, que não ajuda à salvação. Porque, felicidade, satisfação ou salvação, são o objectivo de criar valor, tentando o homem criar um estado que o projecta para além da sua fragilidade para normativizar a sua capacidade.

7.A prova

         A sociedade que cria produtores não cria sábios. A sabedoria é a sistematização, o cultivo da teoria que organiza as actividades entre os homens, a abstracção das características do real em ideias que o ampliam e desenvolvem o conhecimento. Passar da actividade à teoria, é retirar pessoas da produção. O que uma sociedade cuida; especialmente nos sistemas que centralizam a produção acumulando-a em lucro via valor marginal, tudo o que os produtores deixam de receber pela sua actividade; é a manutenção de um stock de pessoas que derivem o seu saber da prática directa com as coisas. O homem que fica sujeito ao grupo e à lei. A dimensão da sujeição básica, que cria a virtude do engenho no trabalho, é a de colocar as habilidades ao serviço do grupo: é por isso que, apesar da divisão da sociedade do salário em tantos indivíduos como capacidades particulares existem, a avaliação do trabalho ainda se apresenta como um serviço à nação. Trabalhar dignifica a pessoa e engrandece o país, sendo esta a ideia que se transmite ao cidadão que se fabrica textualmente nas escolas. A dimensão básica que serve para sistematizar tudo aquilo que, depois disso, é pecado, encontra-se no texto básico da gesta histórica ocidental, o evangelho. Nesta dimensão, existem três ideias: uma, é a de que ou se está unido aos outros ou se anda perdido, a menos que o coração esteja unido, todo o corpo fraquejará. A segunda é que, apesar da união com os outros, a sua igualdade e competência colocarão pedras no caminho que fazem tropeçar: quer dizer, se está bem com o grupo com que se trabalha, outros há que querem enganar e fazer mal. Aqui, ficamos advertidos acerca da condição humana que o evangelho explica claramente e que a teoria económica de hoje chama concorrência, ajuste entre a oferta e a procura. Uma terceira ideia que o evangelho veicula é a de que o Ocidente sistematizou a sua construção da História e põe na voz de Jesus, é a de que a vontade nem sempre é livre, explicando esta ausência de liberdade pela metáfora do demónio. O conjunto de identidades com que o imaginário ocidental governa a sua conduta, passa pela criação de conceitos que explicam a sujeição ao não bem porque há outra vontade que subjuga. Se digo ao não bem, é para enfatizar a ideia de que o homem, feito à imagem da divindade, que é como a si mesmo se concebe, não quer o mal. Se o consegue pessoalmente, é porque há agentes externos que o promovem. As relações sociais, então, contêm ideias que, por meio do cultivo do conceito de alma e de salvação, procuram entender o que é uma vontade livre que permita manter cada membro do grupo dentro das suas capacidades médias na construção da sua história. Porém, esta construção é guiada pela ideia que a Igreja desenvolve. A Igreja serviu de veículo de manutenção da ideia religiosa com via do saber, separando a inteligência da experimentação e submetendo a explicação dos fenómenos à crença no mal que só se afasta do homem pelo seu engenho. A virtude do trabalho  resguarda do pecado.

8. A cultura letrada

         A experiência humana pode-se cristalizar em escritos que são devolvidos ao povo pelas explicações dos especialistas. Embora a sociedade que cria produtores não crie sábios, não deixa abandonado o grosso das pessoas. A teoria é entregue de forma sistemática através do tempo, em conceitos que decompõem o real e colocam a dúvida permanente na dimensão básica das relações sociais: há que amar e viver para os outros, mas os outros pode fazer-nos mal. O que se verifica porque em cada indivíduo há a possibilidade de enganar. A teoria  que se explica por meio de Jesus diz que o pecado é a falta de bondade, as paixões que deixam arrastar para a ira e para a luxúria e o desejo impuro. Esta ideia vem de um povo que é formal e ortodoxo na forma de entender a vida: criar. O objectivo da vida é criar, como ensina a própria metáfora da divindade. Desenvolvimento histórico da ideia de pecado expressa-o: o pensamento que se desenvolve fora do real, infrutífero, sendo o real a ordem que se construiu, e a indecisão moral face ao dever, colocam a pessoa dividida. Os intelectuais observaram o comportamento e explicam-no por fórmulas que procuram aliviar a dor ou as consequências improdutivas da condição humana em prol da não esterilidade histórica do grupo. Não é a revelação que entrega esses dados, é a observação. S. Paulo observa que o desejo interferir com a lei que ordena a acção e o pensamento; S. João define o isolamento do indivíduo com a incapacidade do homem para possuir-se, aceitar-se a si mesmo e estar com e no meio dos outros, sendo o orgulho e a sensualidade duas condições que interferem no pensamento. A Patrística do século II até à Idade Média, observa os seres humanos a afastarem-se das ideias judaico-cristãs de unidade, por meio de condutas que define como fornicação, idolatria, assassinato, falta de vontade para aderir à vontade da divindade que se expressa na ordem natural  com que se explica a realidade, como explica Agostinho de Hipona: a teoria não causal da relação entre as coisas, pessoas, ideias e tecnologia. O crescimento acumulado pela palavra escrita – o verbo feito cátedra – , leva, na Idade Média, a definir que o pecado é amar os homens e não a Deus, onde a concupiscência é o conceito central. A reforma, a contra-reforma e o pensamento actual da teoria, colocam o pecado num só plano: a luta entre razão e paixão, onde o pecado é o facto social pelo qual o trabalho de todos não reverte em favor de cada um, mas sim de quem toma vantagem no entendimento da reprodução. Eu diria, na senda de Kant (1793), que o problema se coloca pelo facto de cada homem estar dotado da razão; e acrescentaria que numa cultura onde se produz em grupo mas se aprende individualmente, cultiva-se a separação de uns e de outros por meio de pensar a igualdade e desenvolver o contrato, onde o conceito de pecado acaba por transferir-se para uma forma de regular a produção ao actuar na consciência. E é assim que a lei positiva o entende agora, a Igreja o transpõe e a teoria económica o usa. O conceito de pecado é, pois, a explicação das possibilidades de um real contraditório composto por indivíduos dotados de razão que produzem e reproduzem socialmente: onde a opção individual se doseia com a solidariedade. O pecado sistematiza os elementos da realidade que dinamizam o processo de reprodução da sociedade.

9. A reprodução social

         O pecado sistematiza os elementos do real que dinamizam o processo de reprodução da sociedade. Estes elementos são os recursos que classificamos em pessoas, coisas, ideias e que estão contidos num conhecimento herdado que gosto de chamar tecnologia. A relação entre todos estes recursos, a matéria que tem de ser trabalhada, os homens que a trabalham, as ideias que teorizam como trabalhá-la e que resultam de lidar com ela, formam a teoria onde o conceito de pecado sistematiza e classifica a conduta social. Porém, existe uma capacidade teórica mais ampla no conceito, que creio que deve ser explorada: a capacidade de permanentemente reclassificar as pessoas. De facto, a economia ao longo do tempo foi abstraindo as qualidades das actividades que as pessoas desempenham, convertendo-as em ofícios. O lugar que uma pessoa ocupa na estrutura social tem a haver com a apreciação do ofício que desempenha por relação à forma reprodutiva mais importante do seu tempo; as qualidades com que desempenha o seu ofício ou o trabalho parte do valor do conhecimento e capacidade que se pode exigir da pessoa nos postos de trabalho. Durante a vigência, ou dominância, no pensamento humano da ética económica da religião, as condições pessoais do desempenho são avaliadas: seja a virtude que a descreve a pessoa à propriedade, seja o cultivo do mal e da ideia de ser pecador e de transgredir que se junta ao uso do corpo no trabalho. Na taxinomia que propus, a pessoa que está mais perto da divindade é a que sabe que não usa o seu corpo  na produção, enquanto que mais perto da terra está quem só tem o seu corpo para lidar com a Natureza. O pecador, sendo aquele que não tem alternativa de conhecimento, é considerado ignorante e possui um lugar fixo nas relações sociais: fora da estrutura dos justos, fazendo o trabalho mais bruto, mais barato e mais “baixo”. É preciso ver a correlação entre o comportamento classificado como pecado e a ausência de saber especializado em todos os campos específicos da actividade, e este pecador específico é bêbado, o opulento, o ignorante dos cuidados com o seu corpo e a sua saúde, o não diligente e o subserviente. Não é o pecador geral que vive em tal estado porque tentou saber e tornar-se independente da divindade, mas o específico que está associado à natureza e à falta de sabedoria para controlar a sua capacidade. Esta é a função do pecado desenvolvida pelas ideias económicas investidas na religião pela letra da lei.

10. E a eficácia simbólica?

         É o que eu me pergunto também. Porém, para ter uma resposta, há que entender a eficácia do simbólico, o totem. Durante todo o meu argumento insisti em que a sistematização do mal é o que permite entender o real que orienta a construção das relações sociais, o meu outro conceito para definir reprodução social. Recordo o exemplo do australiano que morre ao ingerir a comida do chefe, que Freud relata em Totem e Tabu (1912); penso nos milagres, não naqueles que cada religião alega para sistematizar e provar a relação da palavra com o real, mas naqueles em que as pessoas pensam e que acontecem na rede de circunstâncias e casualidades com que vão coordenando as suas ideias com o mundo material. Josep Comelles, no ano de 1989, durante uma troca de ideias, quando proferi a conferência que este texto reproduz, propunha-me uma distinção entre prevenção e cura, onde a virtude traz a graça que permite resistir ao mal, e a confissão repara a alma do mal feito. Penso que, para que o simbólico tenha vitalidade, deve emanar da própria criação da actividade das pessoas. É verdade que a sistematização do mal cria a culpa, ou como diz Le Goff (1981): repressão. É esta a eficácia do simbólico do pecado, criar um sentido para alguma coisa que vai suceder ou sucedeu, como a morte ou a doença às quais o pecado está associado. Contudo, talvez isto só aconteça em grupos onde se perdeu a capacidade de gerar outras teorias, como a de reconstruir a saúde, a de cuidar do corpo. A eficácia simbólica do pecado derivaria do entendimento do texto do qual provém, que não é manipulado nem interpretado pelas pessoas: ao contrário, existe, inclusive, um mediador: o padre, que é a memória do que nesses textos está contido. Penso que é de insistir que a eficácia do pecado reside na exacta medida da explicação que dá acerca dos limites possíveis da conduta social e individual e conhecimento da suas consequências sociais. O sentido pragmático de quem, se não trabalha, se não produz o seu alimento ou o seu salário, tem de defender os limites do que lhe pertence; quando esse limite é violado, começa o pecado, se necessário, com a agressão. É provável, contudo, que para entrar neste campo seja preciso mudar de registo e de nível de análise. Aqui só tentei entender o papel que o conceito tem na construção da reprodução.

BIBLIOGRAFIA

A Bíblia (1611), 1952, Collins Clear-Type Press, London.
COMELLES, Josep Maria, 1989: “Ve no se Dónde, Trae no se qué. Reflexiones sobre el Trabajo de Campo en Antropologia de la Salud”,  in ARXIU d’ Etnografia de Catalunya, nº 7, Tagarrona.
FIRTH, Sir Raymond, 1929: Primitive Economies of the New Zealand Maori, George Routledge and Sons, Londres.
FREUD, Sigmund, (1913), 1919: Totem and Taboo. Resemblances between the psychic lives of Savages and Neurotics, George Routledge and Sons Londres.
GOODY, Jack, 1970: The Myth of the Bagré, Clarendon Press, Oxford.
KANT, Immanuel (1793) 1992: A Religião no limite da simples razão, Edições 70, Lisboa.
LE GOFF, Jacques, 1981: La Naissance du Purgatoire, Gallimard, Paris.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1948: Magic, Science and Religion and other essays, Bacon Press, Massachusetts.
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*Conferência proferida na Universidade Central de Barcelona, em 14 de Março de 1989. (Traduzido do castelhano por Filipe Reis).

terça-feira, 12 de julho de 2011

O pecado através dos tempos

 

1 – A heterogeneidade

          Se a sociedade é produto dos homens, também as ideias contêm uma explicação histórica, quer no sentido da passagem do tempo e na acumulação da experiência do grupo social, quer no facto de pertencer a um tipo de explicação positiva da sociedade. Enquanto facto, o pecado é sujeito da produção humana e tem-se desenvolvido através do tempo e pertence à experiência das relações sociais das diversas culturas do mundo, hoje ou no passado. E digo como um facto, porque a ideia é um conceito genérico que subordina, envolve, define diversos comportamentos mutáveis através dos tempos, reprovados pelo grupo social e por alguma autoridade que sancione a opinião do grupo, autoridade que se baseia mais no que, sendo desconhecido para o conjunto da população, é por ela explicado.
         É destes temas que  me  queria socorrer para argumentar  a correlação existente entre o facto histórico de existir com a ideia de pecado, criada pela sociedade e que a reproduz em que uma autoridade recolhe, sistematiza e controla; e a existência histórica de condutas que se baseiam na estrita colaboração de grupos sociais, cujos indivíduos trabalham e coordenam actividades definidas pelas habilidades e conhecimentos de cada um sem mais garantia que o seu compromisso pessoal e  hierarquicamente definido. Por outras palavras,  existe  uma  relação entre as ideias que um grupo social tem acerca do que deve ser feito por ser necessário, e as ideias acerca do que acontece se tal não é respeitado, ou seja, se a proibição é violada. Isto é pecado.
É a teoria que um grupo social elabora para garantir que se sucedam os factos positivos da continuidade,  que mudam, de tempos a tempos, de contexto, e de cultura para cultura. Entre os Kiriwina, da Nova Guiné, quem não é capaz de apresentar ao guardião da ilha dos mortos um inhame de acordo com o tamanho da família que devia alimentar, perde a sua capacidade de reencarnação e passa a peixe, sendo engolido pelos homens e desaparecendo da existência. No Peru, o machihuenhua que não saiba trabalhar transforma-se em macaco, mesmo em vida. O quechua, que desconheça a autoridade do pai e lhe bata, ficará com a mão seca. O alemão que não seja diligente não pode ser amado pelos outros e perde a visão da divindade. O português adúltero deve pedir a absolvição no tribunal da penitência; o morgado que fez um bastardo cumpre o seu dever; quem trai um seu, não terá nem tribunal humano nem divino que o salve. A figura histórica de Judas Iscariote é  disso exemplo.
 2 – A História
          Os Babilónios, os Egípcios, os Judeus tinham desenvolvido um conjunto de ideias acerca do que deveria ser evitado para não ofender a divindade construída com os elementos das interdições e virtudes sociais, sendo o centro em redor do qual o grupo mede e afere os comportamentos convenientes. As características da divindade são os elementos que indicam os comportamentos adequados do homem: sabedoria, justiça, caridade. Estes três conceitos trespassam os séculos para organizarem o convívio social. Quer nos escritos antigos, quer no moderno cristianismo, quer, em consequência, no uso costumeiro das ideias que originaram os textos que as produzem socialmente e as sancionam, são elementos orientadores do comportamento e capacidade de entender o funcionamento entre seres humanos e com as coisas, de entregar a cada um o que compete por hierarquia social, de avaliar as qualidades individuais no conjunto do social. Redistribuída pelas formas conjunturais do saber através do tempo, a construção humana da sabedoria divina passa de Deus ao rei e ao povo, para voltar depois à teoria económica liberal, que a gere, hoje em dia. O pecado contra a sabedoria subordina todas as acções que definem um indivíduo como um mau pai de família, que não preveja o sustento do seu lar e não eduque os seus dependentes para a vida.
         A justiça pode ser vista na aceitação de que cada um tenha acesso aos outros e aos bens segundo a sua origem e condição, e aí o pecado é a alteração da ordem divina, da paz e do convívio que permite o trabalho. A caridade é a identidade do homem com a divindade à imagem da qual foi feito, onde a sua factual efemeridade o converte em sujeito necessitado de apoio; o pecado reconhece-se no desrespeito por não entregar a tanta criatura que passa, de forma efémera, pela vida, os meios para ultrapassar a sua essência intranscendente. Como estas ideias são materializadas, é uma questão de datas: o cristianismo perseguido suspende o infractor em relação à participação na comunidade dos fiéis, por mais ou menos tempo; o cristianismo no poder absoluto reparte a expiação das faltas entre esta vida e a eterna; o cristianismo que perdeu terreno porque o imperador o ganhou, consegue trazer todo o castigo para a terra e aliar-se ao poder secular com o fogo da tortura; o cristianismo dividido da Reforma deixa o trabalho à consciência, enquanto que a contra-reforma o deixa aos sínodos e à doutrina e, especialmente, à confissão, que fora leve antes do século XI e que passa depois a  ter a força da sistematização das matérias de pecado.
 3 – Os pecados
          De um modo geral, pensa-se que os conceitos que proíbem determinadas condutas na gestão das relações sociais são de natureza sexual e definem a sua repressão. De facto, a história mostra-nos de que forma os corpos se chegam aos corpos por razões bem mais fortes do que as interdições. No entanto, o erotismo e a paixão são temas “governados”, entre outros assuntos, pela doutrina e pelo Direito Canónico. Notem-se três aspectos: em primeiro lugar, que a legislação procura reparar as faltas, isto é, espera que estas sejam cometidas; em segundo lugar, faz uma apurada listagem da sua ordem de grandeza; em terceiro, que as faltas em matéria sexual variam de lugar e importância em diferentes épocas.
         Talvez se possa dizer, com base na evidência histórica, que os chamados pecados da carne, mais do que destinados a orientar os diversos tipos de cópulas possíveis entre os seres humanos, referem-se mais ao destino do produto, caso se trate de relações frutíferas. O próprio Direito Canónico, e a sua laicização na lei positiva, prevêem quais as pessoas, fruto de outros, que se podem ligar aos seus bens e autores, de modo a definirem um posicionamento em relação ao resto dos membros que se consideram ascendentes e descendentes.
         Quase preferia afirmar que a sabedoria, a justiça e a caridade,  atributos da divindade, são distribuídos entre o povo de formas diversas em épocas diversas, e que a visão do pecado sexual é, antes de mais, um tema dos últimos trezentos anos da história ocidental, que agora começa a mudar: nem de outro modo se explica a cuidadosa classificação dos seres humanos e das suas práticas eróticas que o colocam mais perto ou mais longe do convívio social, dos seus parentes. Quase preferia afirmar que a detalhada listagem das interdições sexuais tem menos a ver com as próprias práticas e mais com a necessidade de salientar um tipo de prática em relação às outras. As relações reprodutivas, se comparadas com as que resultam da afectividade como Aristóteles definiu, são incessantemente  pregadas  por S. Paulo, sem detrimento de outras, desde que se procrie. As relações reprodutivas são exclusivamente consideradas práticas legítimas do desejo para os reis, depois para os senhores, e só hoje em dia para o povo, desde que a Igreja, há nove séculos, se fixou no casamento, na altura em que primeiro o poder, e depois os bens eram transferidos ao substituto do titular por via da descendência e estirpe esclarecida.
         Mas, acerca destas matérias, haverá sempre pouca luz, quer porque as práticas sexuais de ontem são vistas com os olhos de hoje, quer porque atingem um campo extremamente sedutor das relações sociais, quer ainda porque talvez não seja de separar a afectividade do prazer e esta seja a definição de luxúria, uma tendência para a unidade do ser, uma unidade que só se pode praticar de forma variada e heterogénea, como fica provado pelo perdão que, afinal, sempre merecia.
 4. A lealdade
          É necessário atentar no conjunto das relações sociais para entender que os atributos da divindade sejam o modelo pelo qual se afere o comportamento. A sociedade que se faz a si própria desenvolve a redução do desconhecido ao conhecido, descobrindo as suas próprias leis de funcionamento. As ideias de pecado têm um contexto no Evangelho, que é o da falta de unidade entre o coração e os factos, a revolta contra a sua própria casa, que faz com que tudo esteja errado. Esta maldade é referida a uma entidade externa, caso haja arrependimento: o demónio, excelente bode expiatório, construído com todos os conceitos, que explicam os avanços da virtude e recuos da lealdade à lei e aos outros. A falta de amor, a luxúria que comporta deslealdade e causa a infelicidade, o não tomar partido e assumir os resultados, a falta de valor moral, são os elementos que compõem o pecado.
         Depois, a história de uma sociedade como a judaica, espalhada entre os bárbaros da Europa, cria ao longo da sua civilização os seus intelectuais, que salientam elementos conjunturais. S. Paulo define Deus como centro da acção, com uma lei perante a qual a carne é fraca porque procura o prazer com o outro e não a compreensão do outro, da qual todo o prazer deriva, inclusive o carnal.
         Penso que é entre a luxúria e a caridade, isto é, a lealdade e a compreensão das características do outro no seu contexto, que se debate do temor do mal e da procura do bem. Infelizmente, só temos os testemunhos da escrita, registados por letrados que, inúmeras vezes, retiraram da vida quotidiana  os ditos, milagres e histórias que sobressaem nessa mesma vida quotidiana, para sabermos como se desenvolve este vaivém na cultura do povo. Mas temos pelo menos um, ou dois grandes indicadores: o primeiro é a doutrina; o segundo, o que se pode reconstruir do nosso próprio presente e resgatar da memória do tempo. Desde o século II, a metáfora da salvação envolve a fidelidade do grupo e as suas ideias, a aceitação da divisão dos poderes pelas capacidades de manipular a natureza de cada indivíduo para o que há que ter vontade livre, como insiste Agostinho de Hipona, a fim de entender e agir e ainda fazer o orgulho substituir Deus por si próprio, é esse o mal de então, que ficou definido até agora na memória dos povos cristãos. De modo que, na teoria moderna, que continua a insistir na divisão entre carne e espírito, a carne representa a individualidade que pode libertar, e o espírito representa o ente social, culturalmente formado. O pecado é o facto de agir independentemente, que desfaz a vida do grupo.
 5. A garantia
          É verdade que a teoria do pecado é fruto dos cultores da letra, saibam ou não escrever, como aconteceu até ao século XI, produzam ou não conhecimento, como acontece até hoje, especialmente quando o saber e a qualidade do Espírito Santo assiste à cátedra, isto é, ao Papado. Mas também é verdade que o que dizem os letrados não é bem entendido pelo povo, que tem a sua própria teoria das acções. Em primeiro lugar, o que os letrados definem tem por limite a possibilidade de governar o povo dentro de limites que não impeçam o trabalho: quer na compilação canónica do bispo Graciano, a partir do século XI, quer na preocupação teológica e económica de Tomás de Aquino com preços, usura, justiça e riqueza; quer ainda na compilação canónica do papa actual; a regulamentação tem um conjunto de excepções, e que faz da excepção a regra para saber como agir na realidade.
         Cuidadosamente divididos os pecadores, – que tentam, induzem,  e fazem as formas, pensamento, acção, bem como os conteúdos e as fontes – soberba, luxúria, ira, gula, inveja, preguiça, as interdições são transmitidas à população por via da palavra. Apropriada pela Igreja como  forma de governo que tem por destino negro a culpa e o Inferno com um Purgatório que foi criado para sua credibilidade na Idade Média , a teoria do pecado é a que aplica um grupo social, cuja conduta é o resultado da memória oral, em que o que se faz é resultado da memória cuidadosamente repartida entre todos os indivíduos segundo a idade e condição, cuidadosamente desenvolvida ao longo do ciclo da vida. Assim, os Maori decidiram que cada filho não casado seja irmão da sua mãe, e o pensamento judeu cristão criou um código ético que crentes e não crentes vão praticando conservadoramente para que não se esqueçam, numa perspectiva de solidariedade que incentiva o convívio dos pequenos grupos de trabalho onde se processa a vida social urbana ou rural, e que garanta a sanção da acção positiva, em direcção ao bem. O mesmo princípio que a cultura letrada usa na lei, e que Mill (1861) e Freedman (1979) recolheram: quem peca é quem, para a teoria dominante da reprodução social, não sabe manipular os seus corpos e bens de acordo com os padrões definidos, conjunturalmente, do agir. E é o que a Igreja Católica Romana tem acautelado através dos tempos. O pecado garante, assim, a produção da sociedades aos recursos produtivos que prevalecem num tempo histórico e ajustam o pensamento à acção desejada para os obter.
 BIBLIOGRAFIA
FREEDMAN, Milton & Rose Marie, (1979) 1980: Liberdade de escolha, Europa-América, Lisboa
MILL, John Stuart, (1861) 1962: Utilitarianism, William Collins & Sons, Glasgow,
Conferência Episcopal, 1917, Código de Direito Canónico.
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*Publicado no Jornal Combate, nº. 114, Dezembro, 1988. (Versão portuguesa de Francisco Louçã).
 Parede, Novembro de 1988.