A História é escrita pelos vencedores, mas o que se perde no campo de  batalha (dos homens e das ideias), pode ser sempre reconquistado nas  guerras da cultura. E a esquerda, entre alguns contratempos no terreno e  muitas derrotas — algumas auto-infligidas — da sua visão mistificada e  burlona da natureza humana, empreendeu, no século XX, uma batalha  cultural que acabou por ganhar. Soljenítsin foi ignorado e logo atacado,  Camus foi abandonado pelos “amigos” e Michael Moore é adulado pelos  anti-americanos, apesar de encarnar o estereótipo americano, com o boné,  o duplo queixo e a barriga proeminente. Com figuras bem colocadas no  terreno e desqualificando o inimigo, assim se ganham as guerras  culturais. As camisolinhas do Che Guevara andam por aí para mostrar quem  foi o vencedor desta contenda.
 Vem isto a propósito da ópera Ainadamar, de Osvaldo Golijov, que  ontem foi apresentada pela primeira vez em Granada, nos jardins da  Alhambra. A obra, baseada no assassinato de Federico García Lorca, é um  resultado da manipulação dos factos em cima referida: de um lado estão  os bons, os republicanos, os defensores da liberdade (não se riam); do outro os maus,  os falangistas, carrascos dos amanhãs que cantam. Lorca, o  progressista, é morto pelos reaccionários, uma banda de intolerantes que  não aceitam as ideias inovadoras e a postura social de um autor  apolítico. O problema desta história tão simples, para além da  amplificação dos mitos da guerra civil espanhola, é que Lorca foi um  incansável divulgador e defensor do flamenco e dos touros. O flamenco,  no início do século XX, era visto pelas forças progressistas como um dos  males de Espanha. O outro alvo da Geração de 98, os touros, é um tema  que ainda hoje leva à histeria os radicais, que vêem a festa  como um dinossauro reaccionário encravado na engrenagem progressista.  Lorca, o poeta do flamenco e dos touros, retratado como o centro de um  conflito progressista vs reaccionário é, por isso, risível. No mínimo.
 Conhecendo bem Espanha, suspeito que a forma como é abordada a  história causou algum incómodo na audiência. Excepto meia dúzia de  palermas que gostam de ir para as Puertas del Sol gritar pela “memória  histórica”, os espanhóis, mesmo aqueles que votam à esquerda e que  contam nas memórias familiares com avôs e bisavôs mortos pela Falange,  recusam a visão maniqueísta da Guerra Civil de Espanha que foi sendo  construída pelos soldados da cultura. Quando se toca no tema, não  escondem o desconforto. Mas à arte não se pede rigor, correcção (ou  incorrecção) política, e muito menos que seja um refúgio confortável.  Não é pelo maniqueísmo que Ainadamar falha. Este detalhe, no entanto, é o  prenúncio do desastre.
 Demasiado confiante no impacto da descrição romantizada, e até  lamechas, da guerra e dos eventos ligados à morte de Lorca, o autor do  libreto, David Henry Hwang, desleixou-se e apresenta-nos uma obra sem  drama, sem tensão, com momentos banalíssimos e cenas mal resolvidas, e  com um final penoso. O pormenor de encenar a Falange a cantar e a bailar  flamenco é incompreensível desde qualquer ponto de vista. Se pretendia  evocar o espírito da geração de 98, Hwang falhou estrondosamente, como  já foi referido atrás. Se é alguma espécie de ironia, então fomos todos  ludibriados pela obscuridade da intenção. À saída, o flamenco da Falange  foi o ponto mais criticado da noite. Uma parvoíce que nem sequer o  brilhante desempenho de Alfredo Tejada pôde atenuar.
 A um libreto desastrado junta-se uma música que, apesar de momentos  belos, como a abertura, não deixa muito espaço aos cantores. Osvaldo  Golijov é conhecido por incorporar nas suas composições os sons  tradicionais das três culturas, a judia, a árabe e a católica. Apesar de  não ser o elo mais fraco do espectáculo, esperava-se mais de Golijov,  especialmente numa obra que se situa, física e culturalmente, na cidade  que foi o ponto de convergência dessas três culturas: Granada. Quanto  aos cantores, não há muito a dizer. Excepto o já referido Tejada, vale a  pena destacar apenas a meio-soprano Marina Pardo, que fez o que pôde  por um Lorca perdido nos delírios de Hwang. O baile flamenco foi fraco,  sem peso na encenação, e fica-se com a ideia de que podia ter sido  melhor aproveitado. Em resumo, poucos altos e muitos baixos numa noite  de ópera que apenas a frescura e beleza da Alhambra nocturna pode um dia  resgatar do esquecimento. Golijov devia escolher melhor as companhias.
In: Aspirina B