1. O Problema
         Todos os povos idealizam as  formas segundo as quais os bens serão produzidos, distribuídos e  consumidos. Se esta actividade está ou não dividida em estruturas e  instâncias, e qual delas assume precedência por sobre as restantes, é um  problema do investigador, cuja técnica de conhecimento contém os  limites do seu saber. Pode-se dizer que, para as pessoas que trabalham, o  conhecimento daquilo que fazem, como, quando, quanto e com quem passa  por avaliações e decisões que dependem também do seu próprio  entendimento do mundo. Assim sendo, penso que existe apenas uma forma de  abordar este processo, definindo os conceitos que usamos para  escutá-lo: se é certo que todos os povos produzem, não é menos certo que  todos sabem como o fazer. É neste conjunto que temos de introduzir a  dimensão temporal para entender como se combinam as ideias e as  actividades. Ao longo do tempo, o conceito de economia tem variado desde  o conjunto doméstico que trabalha, dividindo as actividades segundo as  formas de classificar pessoas dos gregos clássicos, até à teoria  independente que se pronuncia sobre as qualidades das coisas, teorizando  e estudando a sua acumulação, cujo controlo passa a classificar as  pessoas.
         Ao longo dos séculos, as formas  de combinar coisas, pessoas, ideias e tecnologias têm sido definidas   pela  participação de  uma vontade  divina arbitrária na criação da  sociedade, incarnada aos seus ministros e em preceitos.
Pode dizer-se, que a vontade divina,  sendo criação do homem, já que só tem existência na medida em que é  usada no cálculo reprodutivo, incarnando-se nele, ou melhor,  materializando-se nele, é o conceito à volta do qual os povos constróem a  explicação de si próprios e aferem as relações entre os membros  individuais. Esta é a forma chamada religiosa de entender as relações  sociais, definindo o trabalho de forma directa e precisa, que se  pronuncia sobre as modalidades de pagamento de preços e salários. Não se  pode dizer que a economia tenha permanecido dentro da religião, porque a  religião é outra forma de pensar o valor das coisas; é, contudo, a  forma que serve de base imediata à criação da economia como modo de  teorizar que calcula pela utilidade marginal que os homens podem criar  quando têm bens acumulados com vista ao lucro. A divisão taxativa entre  ambas as formas de teorizar-se deve-se, por um lado, à divisão entre  ciência e teologia com que os intelectuais entendem o mundo, enquanto  que, por outro, se deve à ignorância que a cultura letrada, enquanto  forma dominante de pensar a partir da causalidade, atribui aos que não  sabem economia. Estes, usam o saber subordinado da religião.
2. A religião
         Existem mil e uma formas de  definir este conceito, e outras tantas formas haverá também de  entendê-lo e pronunciar-se acerca dele. Entendo por religião o conjunto  de abstracções em ideias, rituais e entidades espirituais que os homens  elaboram a partir da sua experiência histórica: a teorização do  acontecer histórico.
         No meu pensamento está presente o  facto de que, enquanto seres humanos, pronunciamo-nos acerca dos nossos  factos e definimo-los porque é essa a forma de os entendermos,  colocando os limites. Acabamos por definir da mesma forma, aquilo que  serve como o que não serve: sistematizamos os abusos do corpo e  sistematizamos as virtudes da alma. A alma passa a ser assim, uma  síntese do que as pessoas devem fazer, é a memória individual no meio do  colectivo. O homem da mulher Kiriwina (Malinowski, 1948) quando produz  inhames para o irmão dela, exibe a colheita e leva-a em procissão a sua  casa; quando morre, o inhame maior ser-lhe-á oferecido para, na ilha Tuma  ou ilha dos mortos, apresentar ao guardião, que assim ponderará o seu  valor enquanto homem que vale a pena repetir através da encarnação. As  formas de compreensão dos Maori  (Firth, 1929) passam por ponderar os  valores que cada pessoa deve ter na sua condição. O mito do Bagré dos Lo  Dabaga (Goody, 1970) serve para desenvolver as qualidades da observação  e da memória. As pessoas no Ocidente têm de exibir virtudes, que estão  repartidas entre os atributos da divindade, e o culto dos mortos  específicos passaram a ser santos. Enquanto treino, a religião cumpre a  função social de dividir cada membro individual pelo conjunto de  qualidades que, previamente, compõem o modelo central – a divindade. As  qualidades da mente que abstraem passam por entender a diligência, a  lealdade, o amor, a compaixão, a caridade, a fé e outras virtudes que,  se têm, estão atribuídas em conjunto com a sua versão negativa. Parte da  abstracção feita pela mente que constrói as relações sociais são as  ideias de mal e de dor. Mesmo a explicação da criação do homem é um mito  do Génesis que explica, com todo o detalhe, como se chegou a  saber: em companhia de outros seres humanos, da própria natureza que é a  serpente, a árvore e o jardim, e prescindindo da divindade e das suas  normas. O castigo da expulsão, antecipa as fadigas pelas quais passará o  corpo e define com antecedência as doenças ou disfunções que terá na  medida em que transforma a matéria em bens. De forma sistemática, a  concepção que o homem tem da sua própria história é abstraída em formas  explicativas de como entender o real: pessoalmente, experimentando, sem  recurso a outras forças para além da sua, ao mesmo tempo que vai  entregando os elementos do trabalho em representações que permitem  lembrar nas culturas sem escrita. A palavra divindade não é suficiente,  existem as representações que se vêem, assim como mais tarde se lêem.  Com técnicas diversas, o homem abstrai a sua acção e recorda.
3. O pecado
         Se o trabalho é a colaboração de  seres humanos, natureza e saber experiencial dos primeiros sobre a  segunda, quer dizer, o abandono da ideia de divindade ou a  sistematização da matéria, que é o pecado senão uma taxinomia e uma  garantia?
Influenciados como estamos pela nossa  própria forma de pensar, poderemos entender os seres humanos que, pela  crença, definem as formas incorpóreas e abstractas de lembrar as  definições das relações sociais, dizendo que se trata de um culto de  espíritos, que é como designamos tudo o que fica fora da História.  Contudo, se nos recordarmos do valor que o trabalho tem entre os seres  humanos que se vêem e sabem parte da Natureza, apercebemo-nos da  necessidade que a ideia de pecado envolve, de distinguir para entender,  na relação homem Natureza.
         A primeira parte da taxinomia  consiste em manter os indivíduos submetidos ao grupo: o próprio conceito  de pecado deriva do amor, isto é, a caridade entre os homens e para  consigo próprios, expresso no amor da divindade. Quem rompe a lealdade  com o grupo, fica exposto da forma como ficou Caim, Salomão, Jesus,  Judas, Pedro, Thomas Becket, entre outros. No entanto, existe uma forma  de romper por traição, e, a forma de romper porque o grupo se torna  pouco razoável; ainda que nos dois casos se sofra, só a traição é  castigada porque mata o entendimento entre todos, hierarquizado como é.  Uma segunda parte, é o cuidado com as virtudes que a partir da divindade  os homens enumeram, numa projecção das suas próprias potencialidades  com as quais a revestem: justiça, paz, bondade, omnipotência, contidas  no homem. Uma terceira parte da taxinomia, é a submissão à hierarquia do  grupo que trabalha, onde há uma correlação entre dar a vida, ter  recursos, saber administrá-los e aceitar a subordinação aos que sabem e  entregaram o conhecimento e os bens que asseguram a continuidade social.  Uma quarta parte da taxinomia, diz respeito à compreensão dos corpos, o  seu cuidado e o seu objectivo, onde se define o entendimento da sua  gestão, não só para mantê-los vivos, bem como para não desgastá-los. Ao  mesmo tempo, uma quinta parte classifica os bens com que os corpos  trabalham e os retira aos que não possuem entendimento ou legitimidade.  Uma sexta parte refere-se à reputação das pessoas que circulam entre as  coisas, já que sabem transformá-las, o que lhes confere um bom nome,  quer dizer, um destino entre os homens, um lugar garantido na estrutura  enquanto mantenham o seu saber, a fama que vem de preservar o contexto  que guarda esse saber e as condições em que o corpo pode materializá-lo.  Finalmente, a sétima parte da taxinomia é a sistematização das relações  entre os homens, os seus grupos e as suas coisas, de forma que ninguém  subtraia a outro o que facilita e permite a sua reprodução.
         A garantia de tudo isto está na  criação das transgressões que durante muito tempo foram castigadas em  nome da divindade cá na terra, enquanto que no Céu se viria a fazer como  Deus entendesse. A história recente do Ocidente, com o seu antecedente  de abstrair os seres humanos segundo uma concepção do trabalho que se  entende primeiro e se faz depois – alma e corpo – mostra as  consequências da transgressão.
4. Economia
         Parece-me que tais consequências  se encontram na economia, como domínio independente, ou talvez tornado  independente, da religião. O pensamento do Ocidente começa a  preocupar-se com as coisas quando cria uma outra força para o trabalho  que segue estritamente as regras da invenção humana, aplicada agora de  forma não subjugada ao movimento natural. A luta mais esclarecedora é a  discussão entre os fisiocratas e a burguesia no seu interlúdio  revolucionário de 1791. Talvez seja tão importante como a da  sistematização de elementos que se encontravam dispersos e que permitem a  Ricardo formular a lei que orienta a criação do valor, enquanto Marx os  usa para explicar a História. Assim, temos as várias lutas.
         A economia passa a ser a teoria  do trabalho quando as bens adquirem movimento próprio escapando das mãos  dos homens como mercadorias, e o conhecimento se especializa em  qualificar a força de trabalho. A teoria que sistematiza a acumulação  vem já do entendimento de que, obter o trabalho dos outros, quer dizer,  não tratá-los como iguais, decorre da caridade não cumprida. A própria  acumulação é um entesouramento onde apenas se armazena o coração e os  sentidos, se isso a torna possível. Entende-se que o corpo sem cuidados e  sem comida, sem recursos, acaba por não estar em condições de trabalhar  e, usando o artifício de transpor o respeito pelas coisas, pessoas e  prestígios de outros para alguns por meio da lei civil, inverte-se a  realidade que sistematiza o religioso, acabando por fazer desta forma  uma figura verdadeiramente de espelho. A economia valoriza o trabalho do  homem a partir dos mesmos factos pragmáticos com que a religião os  estuda e classifica: é da ética que vem o primeiro princípio da criação  da riqueza, o trabalho; enquanto que o segundo, o valor, pode dizer-se  que vem da apreciação da diligência, honestidade e cumprimento dos  valores domésticos e familiares. O terceiro resultado, a riqueza,  acumulada ou lucro da bondade , que é o conceito que subsume  o saber  usar os bens para os objectivos para os quais servem. É aqui que a  economia consegue a separação dos homens que entendem o trabalho pela  dor, a riqueza pelo milagre, a acumulação pelo respeito ao próprio corpo  e ao dos outros. Cria um conhecimento do movimento dos recursos, da sua  produção, circulação e consumo que escapa a quem não possui o  entendimento dos princípios com que se avalia o cálculo do que produzir,  ao mesmo tempo que se gera uma separação entre esse conhecimento e as  pessoas, através do emprego de técnicas para recordar princípios que não  são apenas escritos, mas obedecem a formas de registar por escrito  depois de aplicar uma bateria de outros conhecimentos, seja no movimento  da produção industrial que obriga a desenvolver a teoria económica,  seja nas próprias regras e abstracções com que o saber económico é  produzido. Conteúdo e forma colocam o saber reprodutivo longe dos não  especialistas, tomando vantagem o proprietário que lucra através das  formas de entender os seres humanos pela sistematização funcional que o  pecado ensina. A economia funciona com a teoria do mal.
5. O mal
         É uma acumulação letrada através  do tempo. Assim como o bem está reflectido na divindade que é infinita,  e é duradouro enquanto virtude, o mal é conjuntural. O problema que o  ser humano tem, por onde é atingido pelos outros ao descuidar-se, é a  sua própria fragilidade no meio da matéria. Não há só que comer, beber,  vestir-se; há que saber como se faz, pô-lo em execução e mostrar que se  persiste e triunfa. A resistência à virtude, é a melhor ideia que  encontro para definir o mal. Ao conjunto há ainda a acrescentar a  afectividade e o desejo que fazem parte do corpo que o homem veste.  Estes elementos individualmente distribuídos por todos os membros de um  grupo social, e por igual, colocam-nos em guarda uns frente aos outros  porque cada indivíduo que sente a necessidade é com outro que vai  resolvê-la. Não se pode entender esta fragilidade no vazio, pois não  existe assim; nem pela categoria histórica, já que é demasiado geral. A  fragilidade reside nos indivíduos que vivem relações de aliança formal,  mas que funcionam pela capacidade ou incapacidade de transformar uma ou  outra parte da Natureza. Não é  a reciprocidade que permeia as relações  humanas numa teoria sobre a dádiva: é a competência que distribui  desigualmente capacidades entre indivíduos que vivem em grupos. O que  relaciona cada um destes elementos com os de fora do seu grupo de  pertença, é a sua própria capacidade de produzir o óptimo: bem,  rapidamente, e para suprir as necessidades de muitos.
         A sabedoria assim avaliada, é controlada diversamente através do tempo, da mesma forma que se entende que o grupo do Génesis,  ao ignorar Deus, peca. A capacidade é um elemento de hostilidade quando  não possui, vem de Deus quando a pessoa que a distribui entre todos o  faz sem vantagens materiais, ou do Diabo quando se aprende o que dá  vantagem. O mal é saber para vantagem própria, controlando com o saber  os recursos que defendem o homem da sua fragilidade. Preguiça: afasta do  trabalho; luxúria: não permite controlar a fertilidade; avareza: retira  bens da circulação; usura: acumula-os em poucas mãos. É por isso que  são castigados. Como também o é a experimentação fora da teologia, ou  seja, a aprendizagem das as técnicas de conhecimento que estão definidas  fora do grupo em que a pessoa está. A capacidade não explicada para  poder trabalhar optimizando, assim como a capacidade não submetida à  hierarquia e poder que não acumula para glória da divindade, são bases  do mal.
         Desde o desenvolvimento da  teoria do contrato, a suposta igualdade resolveu a situação  parcialmente, mas colocou-as de forma ininteligível por meio de regras  da cultura letrada, temática que constitui um outro capítulo deste  livro. A capacidade do homem para produzir valor económico que se troca,  pode entender-se na medida em que a sua habilidade é teorizada em  proibições frente à sua fragilidade. Pelo que, o que o conceito de  pecado faz, é sistematizar a natureza e capacidade dos seres humanos na  construção das suas relações.
6. O valor
         Será ao económico, não ao ético  que me refiro aqui. Não me parece ser possível separar as duas formas de  o conceptualizar: o trabalho é de quem o faz. Na economia, o trabalho é  conceptualizado e entendido como a aplicação do esforço humano à  transformação da natureza e esta actividade cria, de acordo com o tempo  que demora, a desigualdade entre as coisas que permite, avaliando-as,  equiparando-as e  trocando-as. Há quem diga que é a escassez do bem  produzido que cria o seu valor; há quem diga que a riqueza resulta da  utilidade marginal. Contudo, o valor é, em todas as hipóteses, a  avaliação de um bem que resulta do trabalho humano, com ou sem utilidade  marginal. Estas ideias sistematizam a criação de bens e a subordinação  do Homem aos mesmos, mas mantêm o conceito básico de actividade humana  dirigida para a transformação da matéria: o que se procura é  domesticação da matéria, seja pela vida da ciência para quem entende o  raciocínio letrado, seja através do raciocínio que deriva a experiência  acumulada em várias divindades que se pronunciam sobre a heterogeneidade  do mundo, unificando actividades diversas em prol da fabricação de um  objecto, ou da organização de uma tarefa.
         A ideia básica do trabalho foi  concedida no Ocidente como uma condição para o homem viver num estado  natural de economia natural e é esse conceito que define a criação do  valor. Os textos que definem a economia natural, ou relações sociais  sistematizadas a partir da subordinação da matéria à habilidade humana  organizada em família e grupo de parentes, estão baseados nas ideias  definidas teologicamente através do tempo e acumuladas em escritos.  Estes textos acabam por configurar as relações de uma forma definitiva,  contextualizando o trabalho. O primeiro tópico que a ética aborda, é o  do engenho de cada um, enquanto virtude, acompanhado pela habilidade e  pela a fidelidade ao que se sabe fazer e a obediência para com quem  manda fazer. O segundo, explicita que o trabalho é digno, ou seja, a  pessoa é socialmente aceite, cultivada e respeitada desde que domine uma  forma de subordinar a natureza, sendo assim uma parte da memória do  grupo. Simultaneamente, a actividade produz uma igualdade entre os  himens que a praticam: todos os seres humanos estão sujeitos à  necessidade de produzir uma parte da vida e esta produção, que acaba por  ser desigual porque são muitas as tarefas, gera o conceito de justiça  ou conjunto de regras que resguardam a igualdade entre as pessoas,  apesar da diferente aplicação do seu esforço. Em terceiro lugar, esta  justiça encontra-se na medida em que a Natureza está partilhada através  de um sistema privado de possuí-la, pagando-se a quem não possui um  salário que seja conveniente para a actividade realizada conforme a  condição daquele que produz, do que produz, e para quem o faz. Em quarto  lugar, os bens produzidos neste sistema, em virtude do trabalho e da  propriedade, podem-se trocar, mas não devem negociar já que esta  actividade fica fora do foro da economia natural, sem criação de valor  pelo esforço humano, mas sim por moeda, que não ajuda à salvação.  Porque, felicidade, satisfação ou salvação, são o objectivo de criar  valor, tentando o homem criar um estado que o projecta para além da sua  fragilidade para normativizar a sua capacidade.
7.A prova
         A sociedade que cria produtores  não cria sábios. A sabedoria é a sistematização, o cultivo da teoria que  organiza as actividades entre os homens, a abstracção das  características do real em ideias que o ampliam e desenvolvem o  conhecimento. Passar da actividade à teoria, é retirar pessoas da  produção. O que uma sociedade cuida; especialmente nos sistemas que  centralizam a produção acumulando-a em lucro via valor marginal, tudo o  que os produtores deixam de receber pela sua actividade; é a manutenção  de um stock de pessoas que derivem o seu saber da prática directa com as  coisas. O homem que fica sujeito ao grupo e à lei. A dimensão da  sujeição básica, que cria a virtude do engenho no trabalho, é a de  colocar as habilidades ao serviço do grupo: é por isso que, apesar da  divisão da sociedade do salário em tantos indivíduos como capacidades  particulares existem, a avaliação do trabalho ainda se apresenta como um  serviço à nação. Trabalhar dignifica a pessoa e engrandece o país,  sendo esta a ideia que se transmite ao cidadão que se fabrica  textualmente nas escolas. A dimensão básica que serve para sistematizar  tudo aquilo que, depois disso, é pecado, encontra-se no texto básico da  gesta histórica ocidental, o evangelho. Nesta dimensão, existem três  ideias: uma, é a de que ou se está unido aos outros ou se anda perdido, a  menos que o coração esteja unido, todo o corpo fraquejará. A segunda é  que, apesar da união com os outros, a sua igualdade e competência  colocarão pedras no caminho que fazem tropeçar: quer dizer, se está bem  com o grupo com que se trabalha, outros há que querem enganar e fazer  mal. Aqui, ficamos advertidos acerca da condição humana que o evangelho  explica claramente e que a teoria económica de hoje chama concorrência,  ajuste entre a oferta e a procura. Uma terceira ideia que o evangelho  veicula é a de que o Ocidente sistematizou a sua construção da História e  põe na voz de Jesus, é a de que a vontade nem sempre é livre,  explicando esta ausência de liberdade pela metáfora do demónio. O  conjunto de identidades com que o imaginário ocidental governa a sua  conduta, passa pela criação de conceitos que explicam a sujeição ao não bem porque há outra vontade que subjuga. Se digo ao não bem,  é para enfatizar a ideia de que o homem, feito à imagem da divindade,  que é como a si mesmo se concebe, não quer o mal. Se o consegue  pessoalmente, é porque há agentes externos que o promovem. As relações  sociais, então, contêm ideias que, por meio do cultivo do conceito de  alma e de salvação, procuram entender o que é uma vontade livre que  permita manter cada membro do grupo dentro das suas capacidades médias  na construção da sua história. Porém, esta construção é guiada pela  ideia que a Igreja desenvolve. A Igreja serviu de veículo de manutenção  da ideia religiosa com via do saber, separando a inteligência da  experimentação e submetendo a explicação dos fenómenos à crença no mal  que só se afasta do homem pelo seu engenho. A virtude do trabalho   resguarda do pecado.
8. A cultura letrada
         A experiência humana pode-se  cristalizar em escritos que são devolvidos ao povo pelas explicações dos  especialistas. Embora a sociedade que cria produtores não crie sábios,  não deixa abandonado o grosso das pessoas. A teoria é entregue de forma  sistemática através do tempo, em conceitos que decompõem o real e  colocam a dúvida permanente na dimensão básica das relações sociais: há  que amar e viver para os outros, mas os outros pode fazer-nos mal. O que  se verifica porque em cada indivíduo há a possibilidade de enganar. A  teoria  que se explica por meio de Jesus diz que o pecado é a falta de  bondade, as paixões que deixam arrastar para a ira e para a luxúria e o  desejo impuro. Esta ideia vem de um povo que é formal e ortodoxo na  forma de entender a vida: criar. O objectivo da vida é criar, como  ensina a própria metáfora da divindade. Desenvolvimento histórico da  ideia de pecado expressa-o: o pensamento que se desenvolve fora do real,  infrutífero, sendo o real a ordem que se construiu, e a indecisão moral  face ao dever, colocam a pessoa dividida. Os intelectuais observaram o  comportamento e explicam-no por fórmulas que procuram aliviar a dor ou  as consequências improdutivas da condição humana em prol da não  esterilidade histórica do grupo. Não é a revelação que entrega esses  dados, é a observação. S. Paulo observa que o desejo interferir com a  lei que ordena a acção e o pensamento; S. João define o isolamento do  indivíduo com a incapacidade do homem para possuir-se, aceitar-se a si  mesmo e estar com e no meio dos outros, sendo o orgulho e a sensualidade  duas condições que interferem no pensamento. A Patrística do século II  até à Idade Média, observa os seres humanos a afastarem-se das ideias  judaico-cristãs de unidade, por meio de condutas que define como  fornicação, idolatria, assassinato, falta de vontade para aderir à  vontade da divindade que se expressa na ordem natural  com que se  explica a realidade, como explica Agostinho de Hipona: a teoria não  causal da relação entre as coisas, pessoas, ideias e tecnologia. O  crescimento acumulado pela palavra escrita – o verbo feito cátedra – ,  leva, na Idade Média, a definir que o pecado é amar os homens e não a  Deus, onde a concupiscência é o conceito central. A reforma, a  contra-reforma e o pensamento actual da teoria, colocam o pecado num só  plano: a luta entre razão e paixão, onde o pecado é o facto social pelo  qual o trabalho de todos não reverte em favor de cada um, mas sim de  quem toma vantagem no entendimento da reprodução. Eu diria, na senda de  Kant (1793), que o problema se coloca pelo facto de cada homem estar  dotado da razão; e acrescentaria que numa cultura onde se produz em  grupo mas se aprende individualmente, cultiva-se a separação de uns e de  outros por meio de pensar a igualdade e desenvolver o contrato, onde o  conceito de pecado acaba por transferir-se para uma forma de regular a  produção ao actuar na consciência. E é assim que a lei positiva o  entende agora, a Igreja o transpõe e a teoria económica o usa. O  conceito de pecado é, pois, a explicação das possibilidades de um real  contraditório composto por indivíduos dotados de razão que produzem e  reproduzem socialmente: onde a opção individual se doseia com a  solidariedade. O pecado sistematiza os elementos da realidade que  dinamizam o processo de reprodução da sociedade.
9. A reprodução social
         O pecado sistematiza os  elementos do real que dinamizam o processo de reprodução da sociedade.  Estes elementos são os recursos que classificamos em pessoas, coisas,  ideias e que estão contidos num conhecimento herdado que gosto de chamar  tecnologia. A relação entre todos estes recursos, a matéria que tem de  ser trabalhada, os homens que a trabalham, as ideias que teorizam como  trabalhá-la e que resultam de lidar com ela, formam a teoria onde o  conceito de pecado sistematiza e classifica a conduta social. Porém,  existe uma capacidade teórica mais ampla no conceito, que creio que deve  ser explorada: a capacidade de permanentemente reclassificar as  pessoas. De facto, a economia ao longo do tempo foi abstraindo as  qualidades das actividades que as pessoas desempenham, convertendo-as em  ofícios. O lugar que uma pessoa ocupa na estrutura social tem a haver  com a apreciação do ofício que desempenha por relação à forma  reprodutiva mais importante do seu tempo; as qualidades com que  desempenha o seu ofício ou o trabalho parte do valor do conhecimento e  capacidade que se pode exigir da pessoa nos postos de trabalho. Durante a  vigência, ou dominância, no pensamento humano da ética económica da  religião, as condições pessoais do desempenho são avaliadas: seja a  virtude que a descreve a pessoa à propriedade, seja o cultivo do mal e  da ideia de ser pecador e de transgredir que se junta ao uso do corpo no  trabalho. Na taxinomia que propus, a pessoa que está mais perto da  divindade é a que sabe que não usa o seu corpo  na produção, enquanto  que mais perto da terra está quem só tem o seu corpo para lidar com a  Natureza. O pecador, sendo aquele que não tem alternativa de  conhecimento, é considerado ignorante e possui um lugar fixo nas  relações sociais: fora da estrutura dos justos, fazendo o trabalho mais  bruto, mais barato e mais “baixo”. É preciso ver a correlação entre o  comportamento classificado como pecado e a ausência de saber  especializado em todos os campos específicos da actividade, e este  pecador específico é bêbado, o opulento, o ignorante dos cuidados com o  seu corpo e a sua saúde, o não diligente e o subserviente. Não é o  pecador geral que vive em tal estado porque tentou saber e tornar-se  independente da divindade, mas o específico que está associado à  natureza e à falta de sabedoria para controlar a sua capacidade. Esta é a  função do pecado desenvolvida pelas ideias económicas investidas na  religião pela letra da lei.
10. E a eficácia simbólica?
         É o que eu me pergunto também. Porém, para ter uma resposta, há que entender a eficácia do simbólico, o totem.  Durante todo o meu argumento insisti em que a sistematização do mal é o  que permite entender o real que orienta a construção das relações  sociais, o meu outro conceito para definir reprodução social. Recordo o  exemplo do australiano que morre ao ingerir a comida do chefe, que Freud  relata em Totem e Tabu (1912); penso nos milagres, não  naqueles que cada religião alega para sistematizar e provar a relação da  palavra com o real, mas naqueles em que as pessoas pensam e que  acontecem na rede de circunstâncias e casualidades com que vão  coordenando as suas ideias com o mundo material. Josep Comelles, no ano  de 1989, durante uma troca de ideias, quando proferi a conferência que  este texto reproduz, propunha-me uma distinção entre prevenção e cura,  onde a virtude traz a graça que permite resistir ao mal, e a confissão  repara a alma do mal feito. Penso que, para que o simbólico tenha  vitalidade, deve emanar da própria criação da actividade das pessoas. É  verdade que a sistematização do mal cria a culpa, ou como diz Le Goff  (1981): repressão. É esta a eficácia do simbólico do pecado, criar um  sentido para alguma coisa que vai suceder ou sucedeu, como a morte ou a  doença às quais o pecado está associado. Contudo, talvez isto só  aconteça em grupos onde se perdeu a capacidade de gerar outras teorias,  como a de reconstruir a saúde, a de cuidar do corpo. A eficácia  simbólica do pecado derivaria do entendimento do texto do qual provém,  que não é manipulado nem interpretado pelas pessoas: ao contrário,  existe, inclusive, um mediador: o padre, que é a memória do que nesses  textos está contido. Penso que é de insistir que a eficácia do pecado  reside na exacta medida da explicação que dá acerca dos limites  possíveis da conduta social e individual e conhecimento da suas  consequências sociais. O sentido pragmático de quem, se não trabalha, se  não produz o seu alimento ou o seu salário, tem de defender os limites  do que lhe pertence; quando esse limite é violado, começa o pecado, se  necessário, com a agressão. É provável, contudo, que para entrar neste  campo seja preciso mudar de registo e de nível de análise. Aqui só  tentei entender o papel que o conceito tem na construção da reprodução.
BIBLIOGRAFIA
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KANT, Immanuel (1793) 1992: A Religião no limite da simples razão, Edições 70, Lisboa.
LE GOFF, Jacques, 1981: La Naissance du Purgatoire, Gallimard, Paris.
MALINOWSKI, Bronislaw, 1948: Magic, Science and Religion and other essays, Bacon Press, Massachusetts.
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*Conferência proferida na Universidade Central de Barcelona, em 14 de Março de 1989. (Traduzido do castelhano por Filipe Reis).